AS ARMADILHAS BÁSICAS NO USO DA COMUNICAÇÃO NÃO-VIOLENTA – Miki Kashtan


AS ARMADILHAS BÁSICAS NO USO DA COMUNICAÇÃO NÃO-VIOLENTA – Miki Kashtan



Obs: numa tentativa de adotar uma linguagem menos sexista optei por utilizar pronomes de gênero no feminino na tradução, já que o artigo foi escrito por uma mulher, em especial quando ela se refere a “nós”. 

Se você domina a linguagem, mas não o espírito por trás dela, tome cuidado…

Original em inglês disponível em: https://www.psychologytoday.com/blog/acquired-spontaneity/201206/basic-pitfalls-using-nvc Tradução: Angelica Rente

Muitas pessoas, quando aprendem Comunicação Não-Violenta pela primeira vez, ficam tão entusiasmadas com as possibilidades que enxergam que imediatamente tentam colocá-la em uso em todos os lugares. Com muita frequência os resultados são desastrosos, com as outras pessoas levantando suspeitas sobre a CNV. Aqui estão alguns exemplos do que as pessoas costumam ouvir nestas circunstâncias:

  • “É como se eu tivesse uma estranha completa vivendo na minha casa”
  • “Não use essa tal de CNV comigo!”
  • “O que aconteceu com você? Você não pode falar normalmente?”
  • “Você está soando tão clínica”.
  • “Por que você não pode ser honesta comigo e me dizer o que está acontecendo de verdade com você?”

A questão fundamental aqui, como eu enxergo, é que as pessoas se apaixonam por aquilo que a CNV pode trazer para suas vidas e para o mundo e atribuem este milagre à linguagem, e não à mudança de consciência que precede a escolha das palavras. Como resultado, elas usam a linguagem nas suas interações com as outras pessoas, ao invés de verem [a CNV] como uma ferramenta prática criada para apoiar a integração de princípios e para facilitar a navegação com consentimento mútuo de momentos difíceis. Já que a distinção entre a linguagem e a consciência que a origina é muito desafiadora, eu gostaria de abordar este paradoxo cuidadosamente.

 Objetivando a Integração

 Quase todo mundo com quem entro em contato vê e experimenta o poder imediato da CNV quando ela é usada por uma pessoa experiente, que se mantém calma e presente no momento em que a usa. Mesmo pessoas que, de outra forma, discordariam veementemente das premissas da CNV, especialmente da ideia de transcender completamente o pensamento de certo/errado, obtém benefícios imediatos ao serem ouvidas. Contudo, chegar ao nível de maestria que permite que esta presença e fluidez apareçam requer algo bem maior do que a familiaridade com certo padrão de discurso. Até que esta integração aconteça, a distância entre as palavras e a consciência provavelmente se manifestará como falta de autenticidade, o que representa grande parte daquilo que aborrece as pessoas.

Dois fatores se combinam para criar esta distância. Um e á estranheza de se usar uma forma de falar nova e não familiar. Experimentar algo novo, especialmente quando existe uma tensão em relação a outra pessoa, provavelmente trará constrangimento e desconforto. Sentir este desconforto e escondê-lo, como estamos acostumadas a fazer, imediatamente aparece como falta de autenticidade. Assim como esconder qualquer tipo de desconforto visível.

Outro aspecto deste distanciamento deriva mais diretamente da diferença entre nossas palavras e nossos pensamentos. Se usarmos palavras empáticas enquanto julgamos a outra pessoa, ou se fizermos algo parecer um pedido quando, na verdade, é uma demanda, criamos tensão interna. As palavras empáticas ou pedidos provavelmente carregarão esta tensão com elas, nos nossos movimentos corporais, postura e tom de voz. Adicione a isto nossa preocupação habitual em “fazer direito” e a possibilidade de conexão diminui, mesmo quando estamos tentando obter um nível mais satisfatório de conexão do que o que já existe.

A integração visa ambos estes fatores ao mesmo tempo. Ao nos tornarmos fluidas no uso da linguagem, ela tende a soar menos desajeitada. Podemos falar poética e criativamente, mesmo usando a linguagem das necessidades, se tivermos maestria e tranquilidade, se genuinamente nos preocuparmos com o bem-estar das outras pessoas, mesmo aquelas com quem estamos em conflito, e a capacidade de nos desapegarmos do resultado enquanto nos engajamos no diálogo.

Prática e Vida

 A integração não acontece da noite para o dia ou por si só, apenas porque amamos novas ideias. Ela surge da prática. É por isto que as pessoas que aprendem a CNV com frequência gravitam na direção de outras que já a aprenderam, para que possam praticar juntas. Não tenho dúvidas de que usar o modelo em um contexto de prática, no qual todas as outras pessoas têm a mesma intenção, apoia a integração dos princípios que formam o coração da CNV. Ao mesmo tempo, sempre que me lembro de fazê-lo, eu peço às pessoas que abandonem esta linguagem quando estiverem fora de um contexto de grupo de prática e se foquem apenas naquilo que provavelmente será capaz, momento a momento, de levar a um resultado que atenda às necessidades de todas as pessoas envolvidas. Como se isto fosse fácil… As pessoas continuam a se prender à linguagem porque ela é tão concreta que elas se sentem seguras em tê-la como “muleta”, sem perceberem que estão perdendo seu recurso mais valioso, que é a autenticidade da intenção de seu coração.

Honrando as Escolhas Alheias

 Sempre fico feliz quando vejo casais ou grupos participando de um treinamento. Isto porque a relação em que se encontram oferece um contexto natural de consentimento mútuo para praticarem juntos. A menos que estejamos em um contexto de prática declarado ou tenhamos um acordo explícito com outra pessoa para que ela aceite nossos esforços inexperientes ao aprender um novo modo de nos conectar e comunicar, estaremos, na verdade, praticando em alguém, e não com alguém. Para mim isto não significa que nós nunca deveríamos utilizar a CNV a menos que estejamos plenamente integrados nela ou em um contexto de prática. Também podemos conseguir a concordância de alguém no meio do caminho, especialmente se expressarmos nosso desejo de beneficiarmos a ambos. Se dissermos algo como “Eu estou muito consciente de quantas vezes nós tivemos esta mesma conversa com resultados dolorosos. Eu gostaria de tentar algo diferente. Sou bem nova nisso e posso soar meio desajeitada ou esquisita. Mas eu ainda acredito que isto pode nos oferecer caminhos novos para resolver esta situação complicada. Você está disponível para que eu tente?”, há muito mais chances de que a outra pessoa tenha boa vontade do que se aborreça em relação ao que estamos fazendo.

Adaptando ao Contexto

Levar a CNV ao ambiente de trabalho não é a mesma coisa do que usá-la numa relação pessoal ou terapêutica. Por tê-la utilizado nestes e em outros contextos, eu aprecio profundamente quanta clareza, resiliência e criatividade são necessárias para navegar através destas diferenças.

Muitas pessoas aprendem a CNV num ambiente de workshop, no qual elas se focam mais comumente nas relações pessoais ou em sua própria cura. Um contexto de cura opera em um alto nível de confiança e tende a acontecer dentro de um acordo explícito de engajamento em um nível determinado de vulnerabilidade e profundidade. Extrapolar este contexto para outros ambientes nos quais as pessoas estão acostumadas a proteger sua vulnerabilidade apresenta desafios específicos.

Por exemplo, quando alguém no trabalho expressa sua frustração ou faz fofocas sobre outra pessoa, uma resposta empática modelada de acordo com aquilo que acontece num workshop, além de soar inadequada e não totalmente integrada, também traz o risco de convidar esta pessoa a um nível de vulnerabilidade para o qual ela simplesmente não está disposta. Elas querem ser ouvidas e compreendidas no que disseram, todas nós queremos, ou senão, não falaríamos. Contudo, ser ouvida e compreendida não é a mesma coisa que ter nossas mais profundas necessidades e sentimentos trazidos à superfície. Em contextos diversos, a maneira pela qual mostramos à outra pessoa que ela está sendo ouvida vai variar. Para isto, precisamos de flexibilidade e foco no coração, ao invés de um esforço ansioso para lembrar as palavras “certas”.

O Paradoxo de uma Prática Baseada na Linguagem

 Fundamentalmente, eu espero que as pessoas que aprendem CNV adotem uma relação paradoxal com a escolha específica de palavras que é parte da prática. Meu próprio comprometimento ao compartilhar a CNV com o mundo é baseado no desejo de transformar como nos vemos e como nos relacionamos com nós mesmas, com as outras pessoas e com o mundo natural do qual somos parte. Eu desejo sustentar uma moralidade que não dependa das noções duras de “certo” ou “errado” e que realmente apoie as estruturas e instituições sociais focadas primariamente em atender as necessidades humanas. Eu não tenho nenhum comprometimento com, e nem quero ver, um mundo no qual todas as pessoas falam da mesma forma e usam as mesmas palavras. Imagino quantas mudanças poderiam acontecer se apenas adotássemos a pergunta: “O que apoiaria o surgimento de uma solução que funcionaria para todas as pessoas nesta situação?”, sem que ninguém tivesse que mudar como fala.

Ao mesmo tempo, eu acredito apaixonadamente na prática como um caminho confiável para a mudança, a maestria e a liberdade. A genialidade daquilo que Marshall Rosenberg trouxe ao mundo, da forma que eu vejo, é ser uma prática que usa formas muito específicas de discurso em uma sequência específica de uma maneira que proporciona uma mudança de consciência. Use a linguagem e com o tempo você obterá um maior conhecimento de si mesma e mais liberdade de escolha. Pratique encenações em um grupo de prática, e com o tempo ficará mais fácil de lembrar as necessidades de todas as envolvidas quando você estiver em um conflito com alguém. Espero que outras pessoas que valorizam a prática e suas possibilidades transformadoras enquanto, ao mesmo tempo, reconhecem que a vida não é um grupo de prática se juntem a mim. Fora de um contexto de prática, eu espero que possamos lembrar os princípios fundamentais que nos movem, e nos focarmos apenas em como alinhar nossas ações e palavras aos nossos mais profundos desejos do coração e a estes princípios..


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